domingo, 30 de dezembro de 2012


É no cansaço reclinado de uma noite como esta
Que se acendem estados de ser, de respirar,
Do sentir, da saudade e do que se sonha.
Sempre do que se sonha. Sempre do que se deseja.
Como se não fosse pecado.
Como se infames não fossem as palavras mudas que ouso sibilar
No regaço do teu corpo ausente, aniquilado, ébrio de mim.
Ainda que de castas se pintem. Ainda que em lilazes me acariciem a fronte,
Sei o acre do beijo envenenado que em ânsias me depositam.
Adornam-me o pensamento com ciosas ideias baloiçantes.
Incendeiam-me os olhos gastos do contemplar de eternidades.

Choro tanto que é comum convencer-me que de lágrimas me faço.
De mim tanto irrompe em catadupa que temo pela essência do Cerne.
É pertinente considerar que os homens são de prantos recheados.
Se assim o não é, onde se afogam os cantos de cada madrugada?
Vagueiam ainda perdidos na sombra decadente dos âgulos esguios?
Pairam dias sem fim aguardando pelo mar da torrente nocturna?
Capturam poros imaginários inócuos, sonham sonetos antigos
Sentidos há muitos, muitos anos, antes das formas se saberem formas?
Lambem de ímpeto as suspensas cobranças da loucura perene, prenhe
De cadências derramadas em cálices de sangues sagrados, chagas infinitas,
Negras e prateadas do luar desta noite reclinada na amplitude
Do descomunal esforço de te não pensar.

E desperta-se para a ignóbil e férrea fé da espectação em sombras siamesas das sombras nossas.

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Do não querer


Decide ficar o dia todo a ver tudo e todos mal e então recusa-se a colocar os olhos. Arrasta a cadeira e a escrevaninha de improviso para perto da janela do quarto para melhor aproveitar a luz do dia que nunca  mais chegava, algum ar fresco pela janela mal aberta e talvez alguma perspectiva diferente do espaço-tempo à sua volta e senta-se ao teclado.
É talvez a milésima, centésima, quadragésima oitava vez, e que deve ser a posição que ocupa na sua lista de pensamentos - julga, que pensa nisto. Já nem sabe que palavras usar ou tentar qualquer descrição, já que não há descrição possivel. Na adolescência, amava em dois dias, agora ama em um ano de negação e rodeio e ansiedade e reclusão e kilómetros e kilómetros... E quando pensou que ainda assim era melhor que não sentir nada, ri-se dolorosamente por dentro, rotula a própria mente de insana. E tenta escrever um poema ou dois de palavra nenhuma se tal fôr possivel, e sente-se escarnecida. Agora, quer despir-se daquilo. Mas talvez tenha confessado pecados a mais para os deixar, agora, alheados. Ainda se quer dar mas não percebe em que dimensão ou multiverso tal se dará ou já se deu. A ideia que num outro Mundo  nem se houvessem sequer entrevisto estas vidas ainda lhe aconchega ao de leve a alma cansada da busca. Deixar ir? Não deixar ir? Respirar? Não respirar? Ora, quem saberá?! Ainda se entretém a pensar que tudo está escrito, como se algum pergaminho mágico existisse realmente com como as vidas todas em todos os mundos iriam ser, e parecer e morrer e perecer, e então ainda se consola na inválida ideia de que talvez, e só talvez, desta vez não caiam as paredes de saudade que vai trepando dia e noite e alvorada e ocaso...
Nunca sabe como começar, às vezes tem uma frase que imaginou em qualquer devaneio mental e que depois estica até dar um texto ou coisa que valha, mas nunca se sabe. Montes de frases atiradas ao vento, ao ar, ao que for. Hoje cansa-se, como de resto se vem cansando. Escreveu então sobre a vontade do não sentir, do não querer, do não desejo. Coisas há, que de modo a serem preservadas, nunca se as pode nomear, nem escrever, nem muito menos sequer  pensar, seria pecado altamente capital com direito a navegação directa ao Hades. Espera, ainda, acordar na gélida madrugada e não sentir o ímpeto de fuga guerreira e não ter de contá-lo, depois ao papel, nem sedimentar tal sentir em verbos, nem mastigar descrições, nem procurar sinónimos em ventos ou cristais de geada.
Uma vez mais, e deseja-a definitiva, decide deixar ir. Que não é nem nunca foi suposto. Que foi engano. Que o maldito pergaminho não existe.  Que tem andado este tempo enganada por si mesma e por tudo e por todos. Uma vez mais, e deseja-a a última, quer atirar-se no vazio ainda que nada se esfume, ainda que tudo lhe espere à tona e na volta da infindável aterragem já sabida desde o início do conto do etéreamente impossivel. Pela última vez, ela assim quer desesperadamente, irá desnudar-se do calor no peito, da dor do abraço que não vem, da palavra que não surge em resposta, do silêncio gritante socando ecos. Da indiferença, do encolher de ombros, do carregar de sobrolho, do trejeito com a boca e as covinhas que surgem. Do perfeito puzzle dos corpos e dos lábios, dos olhos que falam e que ouvem e declamam poesias-verdade-nua, das mãos que conhecem todos os caminhos da pele... não quer, não quer, não quer.

Maria Fernandes

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Bicudismo do Futuro (aqui de onde não deveria ter saído)


“O Futuro é uma criatura bicuda que se estende e espreguiça nas incontáveis e absortas cordas dos universos todos. Mascara-se da côr garrida do capricho do momento e devaneia pairando em despojos de vidas-memórias. Atrás de si, vai largando o lastro que em alguma era lhe foi permitido. Depois fita-nos, em espanto e corta-nos a garganta. E deixa-nos em júbilo” –  assim rezava o sonho da infância do não ser. Dentro dos universos, sonhamos uma espécie de pseudo-realidade que nos parece nossa, apoderamo-nos das falácias que se nos dá, quando  em verdade, a mais não nos é permitido aspirar que à condição de marionetas iludidos de livre arbítrio. Ter o espaço, o tempo como nossos, não saber onde desenhar as formas oblíquas das cordas onde nos suspendemos, confiando que se suspende o tempo, quando este nos mascara e nos zomba a cada segundo que- loucos! – chamamos nosso.
Em bicudismos do espaço-tempo e por todas as eras e universos se espraiam passado, presente e futuro. E continuamos – em júbilo.

Maria Fernandes

domingo, 9 de dezembro de 2012

Uma Exortação



Camaleões alimentam-se de luz e de ar:
O alimento dos poetas é o amor e a honra:
Se neste vasto mundo de esmero
Os poetas pudessem o mesmo fazer
Com a sua pequena labuta,
Mudariam alguma vez o seu tom
Como aos camaleões a luz faz,
Ajustando-os a cada raio
Vinte vezes por dia?

Os poetas estão nesta fria terra
Como os camaleões devem estar,
Escondidos do seu nascimento prematuro
Numa gruta sob o mar;
Onde há luz, mudam os camaleões:
Onde não há amor, fazem-no os poetas:
Honra é amor mascarado: se poucos
Encontram um ou outro, nunca estranham
Dos mesmos esse alcance.

Ainda assim, não ousem manchar com riquezas ou poder
A mente livre e divina de um poeta:
Se os luminosos camaleões pudessem devorar
Mais que feixes e vento,
Cresceriam tão terrenos e breves
Como os seus irmãos lagartos.
Filhos de uma soalheira estrela,
Espíritos para além da lua,
Oh, recusem o dom!

Percy Bysshe Shelley

Tradução - Maria Fernandes 

A Flor que Hoje Sorri


A flor que hoje sorri
Amanhã morre;
E tudo o que desejamos que fique
Nos seduz e depois parte .
Qual o prazer do mundo?
Luz que zomba da noite,
Tão breve quanto flamejante.

Virtude, como é efémera!
Amizade, quão rara!
Amor, como vende pobres êxtases
Por orgulhos em desepero!
Mas nós, e mesmo que em breve caiam,
Resistimos à sua alegria, e a tudo
A que nosso chamamos.

Enquanto os céus são azuis e ígneos,
Enquanto as flores são garridas,
Enquanto olhos que mudam antes da noite
Alegram o dia
Enquanto as horas calmas arrepiam,
Sonhai, pois – e do seu sono
Acordai depois para o lamento.


Percy Bysshe Shelley

Tradução - Maria Fernandes

sábado, 8 de dezembro de 2012

Some Faith

É uma vontade de sumir-se pelo chão dentro, esquecer-se.
Ser um novo a cada segundo. Mesclar-se no metafísico, saber nada.
Saber tudo, sentir tudo - ver nada, amar nada, odiar ecos.

É um ter-se de pé desmaiando a cada inspira-expira.
E lembra da dolorosa experiência do existir a insistir.
Não se sabe onde se insiste, não se sabe que se existe.

É o tudo dar e nada reter. É o despojar-se do pudor
Dos castos anos em que se não sonha a clarividência.
Saber-se desnudo, banido de si mesmo, escorraçado de si mesmo.

É de uma náusea velha e gasta de quem sabia já que o tudo
Mais não é que nada na curva apertada das vidas balbuciantes.
As vidas não são mais que dejectos de memórias.

É um sol que não derruba Ícaro. Um vinho que não embebeda Baco.
E ainda, embriagados de sobriedade, bradamos aos infernos
Um pouco de fé, só um pouco de fé cáustica, cálida. Um pouco.



Maria Fernandes






domingo, 25 de novembro de 2012

Psico-Ode da Mulher Apaixonada

E eis que desperto das procelosas vagas da minha aurora.
O ar quente de uma brisa suave traz-me o leve susurro desse nome em surdina. Não existem palavras que descrevam o meu estado no últimos dias. E noites. Esta é a oitava desde que a cosmicidade se consumou na inevitável rendição a que desde imemoráveis eternidades estava conjurada. Por teias do ser e não estar, do estar e não ser, a amar ainda assim, coisas-marianas, di-se-ia. Ah! - e como me perco em tudo o que debito! Ainda que desfrute do prazer esquecido do lápis no papel, redescoberto numa fase já avançada da  decomposição. E como amo a terra e as bases e todo o que é básico, elementar, puro, sem brioches de enfeite nem lantejoulas tagarelas.
No fundo, a ideia de que pelo caminho, a certa altura deixei de ser quem era ou me esqueci de ser quem era. A sensação de que não quis ser quem era mas não quis ser ninguém, nem nada. Quis ser eu sem saber quem era a mulher do reflexo. Quis ser eu, sendo outra, a desconhecida, a nunca-nomeada, a desalmada esbaforida, a mulher apaixonada.
Ou então nunca fui eu nem Eu, nem esta, nem aqueloutra. De maneira que esta que hoje em palavras definha pontapeia ainda em fúria o saco amniótico da solidão assassina.
Ainda que em mim te traga sem te poder alcançar. Ainda que em nenhum corrimão se dependurem as palavras que te falem da grandeza que é deste leve e ígneo âmago de mim, que o mesmo não é desde que o amas. Flutua, agora, paira suave pelos restícios de todas as noites em que adormeço na linha do teu corpo.
Agora, verto as ânsias de te mastigar no íntimo. Arremesso as odes todas que nasceram em sonhos nenhuns. Agora, nem uma palavra que console a leda alma. Agora, olho ao espelho com espanto a mulher intermitente, insistente, mordaz, furiosa, acutilantemente bravia e apaixonada.


Maria Fernandes

sábado, 17 de novembro de 2012

Úrsula



Sob rendas acetinadas,
Dá-me náuseas esta alma imunda
Que de corpos nojentos e suados
Se pinta de preciosas jóias em luxúria!

Ah, pudera ser mulher-menina outra vez!
Ser mulher-menina ao espelho da minha tez!
Menina-púdica que enrubesce a arrojados galanteios!
Mulher-menina de intocados seios!

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2014)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Nudez

Despi-me da armadura de guerra que me deu minha mãe.
Nos anos seguintes, Contemplei tanto cá para dentro que é vulgar convencer-me que olhar para dentro passou a ser parte do meu Eu.

Agora,fico translúcida de me tanto olhar,
De me tanto pensar outra que não esta.
De me tanto pensar
Lesta         

                    leda       
                                     animalesca.

Vestido foi de veludo o ferro.



Maria Fernandes

domingo, 4 de novembro de 2012

Impressões

As palavras que se não sentem
são as que te murmuram
da loucura da mente minha
em vão se formam 
lascivas da pele tua.

As palavras que se não vêem
são as que ecoam no côncavo do regaço da tua mutilação.

As palavras onde deleito 
a ânsia de cafés em manhãs azuis de mantras.

As palavras trago em redomas de luz.


Maria Fernandes

sábado, 27 de outubro de 2012

Manual para a Lucidez

Desposa-a.
Recebe o ventre que se te dá, semeia-o.
Escreve-lhe em pontos aéreos luminosos
Os pesadelos todos das noites últimas.
- Irá fazê-los mito e aquecer-te-á o cerne.

Bebe-a.
Bebe do rasto das lágrimas que te devota.
Fala-lhe dessa dor dormente que te afaga
À qual esperneias e sacodes em raiva.
- Sopra-la-á em gestos suaves e consolar-te-á.

Rouba-a.
Arranca-a da corda bamba de onde não tomba.
De onde ainda te espera à luz da fé incauta.
Canta-lhe a oração das tuas manhãs de ouro.
- Dela fará mantras no nenúfar do teu lago.

Ama-a.
Sorve-lhe o âmago sedento da pele tua.
Afoga-te no calor dos seios que se lhe ardem ao toque.
Dá-te. Dá-te como se milhões de ti houvesse.
- Milhões dela fará para que jamais só te quedes.



Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2014)








terça-feira, 23 de outubro de 2012

Horas Primeiras

É sempre nas horas primeiras da madrugada
Que recito o teu nome.
Recito-o como se outra poesia não respirasse
Para além do teu eco metafísico
Na tal energia afogo a cor.
Com que me pinto - luz.

Confronto-me, não raras vezes
Com o que de mim poderia haver
Nas horas vagas do meu grito.

Se é verdade que cá do cimo tudo abarco
Verdade também é que lá de baixo
Nada e niguém almeja de mim a visão.



Maria Fernandes

domingo, 14 de outubro de 2012

The Bear

Fica em Stratford Road.
Há um qualquer quê nestes pubs. Gosto de me embutir na mobília velha e ouvir o sotaque dos velhos que vêm beber cidra até já não entender que raio de inglês estarão a falar.
Notam-me logo como desconhecida. Imaginam certamente que notas descritivas ou maléficas estarei a escrever.
Os velhos são músicos. Põem-se a um canto e tocam uma espécie de country ao estilo rockabilly. Ninguém parece ligar-lhes. Os velhos também jogam às cartas. Como sou leiga, não percebo que jogo é. Ah, se ao menos o Jack Daniels que pedi me aquecesse as entranhas podia ser que escrevesse um poema. Um poema sobre os velhos, talvez. Talvez depois o afixasse nas portas do pub. Talvez depois houvesse um velho bêbado que o declamasse.
Os velhos também são mulheres. Encharcam-se de whisky e cola e filas de cidra à pint. De repente, parecem notar os velhos que são músicos e põem-se a menear os corpos velhos nas cadeiras. Patéticos, estes velhos que são mulheres. O século XXI não parece ter chegado aqui. Uma foto neste minuto com uma legenda de 1964 seria perfeitamente plausivel. Uma espécie de regressão. Esta gente diverte-se? Parecem estar todos a representar uma cena de outros tempos. Como se todos se tivessem vestido assim e penteado e  maquilhado assim para estarem aqui hoje e agora. Como se passassem a totais desconhecidos e voltassem às suas vidas reais de velhos na altura em que saem lá para fora.
Não é permitido fumar. Não cheira a whisky e a cigarros. 
Cheira só a whisky.


Maria Fernandes

sábado, 13 de outubro de 2012

From Hell - A Postcard





Bouncing, bouncing...

The further I go, the harder I breathe through those flames..
I have been down for eternities losing my faith
Just bouncing from flame to flame.
Waving goodbye to that muscled man
Climbing up the hill praying sin-words to his huge
And eternal fire rock... he pretends to believe in mercy - but I don´t.

Oh yes, I've seen terrible things while bouncing.
Dogs with several heads and snake tails.
Blind women screaming chants of horror and pain
Through their throats infected with deadly poison.
The eyes jumping from their orbits licking everything around.

When dawns are about to rise and as I struggle
To fly in the land of open perceptions, I can still
Hear that sarcastic laughter of those little devils flying in that flaming red sky.
Some of them like to whisper dirty things in our ears - to burn our senses away
To burn our minds away, to make us wish for more sin as a thirst, as a curse.

Landscapes? Oh, there's a lake of fire I remember now
It burned my tongue when in despair I tried to drink from it's womb.
The rest of my dying speech could be explained by the force
Of my latest screaming thoughts for now I write.
What remained from the tongue... bounces.

After all it could be paradise, then I write in tiredness.
What worths your pain could never end mine, I'll take it as a blessing.
Will drag it out in the desolation land where I gladly
Stab former angel's wings, hoping to fly on them. 
Hoping for they to hold and don´t melt as I finally reach the sun.


Maria Fernandes


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Anna, louca




Anna, louca
Tenho uma faca debaixo do braço.
Quando em bicos de pés debito mensagens.
Serei algum tipo de infecção?
Fiz-te enlouquecer?
Tornei acres os sons?
Disse-te que trepasses à janela?
Perdoa. Perdoa.
Diz que o não fiz.
Diz que não.
Diz.

Reza  Avé-Marias na nossa almofada.
Leva-me o desengonçado dos doze anos
Para o teu colo submerso.
Sussurra-me como a um botão-de-ouro.
Come-me. Come-me como a um pudim-creme.
Toma-me em ti.
Toma-me.
Toma.

Dá-me um relatório sobre a condição da minha alma.
Dá-me um depoimento completo das minhas acções.
Dá-me uma concha de arácea e deixa que a ouça.
Põe-me nos estribos e traz uma excursão.
Enumera meus pecados na lista da mercearia e deixa que os compre.
Ter-te-ei enlouquecido?
Ter-te-ei ligado o auricular e posto uma sirene a tocar?
Terei aberto a porta ao psiquiatra de bigode
Que te arrastou consigo como a uma cesta dourada?
Ter-te-ei enlouquecido?
Desde a sepultura escreve-me, Anna!
Não és mais que cinzas mas ainda assim
Pega na Parker que te dei.
Escreve-me.
Escreve.






Anne Sexton
Tradução: Maria Fernandes

sábado, 6 de outubro de 2012

Idos Dias


                Pelos princípios de Novembro naqueles dias, em que o vento pela ravina da barranca começava já a correr veloz e cortante fazendo pingar o resfriado nariz ao descanso de mais uma subida barranca acima e contemplava o verde escuro e ouvia ainda a ribeira, no fundo. Naqueles dias, eu corria à  beira da cerca grande, socava uma cana e heróicamente vinha varejar a tal laranjeira, a das laranjas de umbigo. Conseguia descanscá-las em três, às vezes duas investidas arrancando a casca espessa, meio esponjosa, revelando o fruto no interior. Eram tão doces e tão rasas de suco  que comia três, quatro sem dar por ela. As últimas bebras tardias, em anos de Verão teimoso, costumava já estarem à mão numa folha de couve, em cima da pedra grande, ao pé do palheiro. A avó escondia a chave lá perto num buraco entre as rochas da parede e tapava a abertura com uma laje que acho que tinha arranjado mesmo para esse fim. Nunca percebi por que razão a avó nunca levava a chave do palheiro consigo, tipo num chaveiro. Ela deixava a chave sempre naquele buraco da parede. A avó também nunca trazia a chave de casa consigo. No terreiro repleto de avencas, orquídeas, antúrios e sei lá mais o quê, havia sempre um cântaro secreto, que de resto todos sabíamos qual era, onde ela deixava a minúscula chave de uma das três portas que davam para o terreiro floral. A avó era assim. Tinha destas coisas.
                Era mesmo a última coisa antes de ir para casa. Isso e ainda passar no corte para apanhar araçás, daqueles vermelhos pó caminho. Se ainda fosse Verão ia era ao Lombo de Caboz, à amoreira de João Libano. Ainda bem que nunca nos apanhou senão ia logo chibar à avó que podia vir de vide, coitada, vencida pelo novo tempo em que os putos não vergam mas correm e rebelam-se. A minha avó não percebia nada destas coisas mas ensinou-me o ritual das laranjas de umbigo e dos araçás vermelhos da cerca de cima. O araçaleiro pendia sobre o palheirinho de cima e podia facilmente trepar e colher os frutos, tarefa tantas vezes ingrata que eram três para a boca, um para a sacola. “Tanto tempo, só apanhaste isso?!”, dizia ela depois.
                Pelo caminho, eu cantava com ela cantigas populares que me ia ensinando ao longo do dia e que disciplinadamente me esforçava por aprender. Às vezes, muitas, eram cânticos litúrgicos – a  avó era católica fervorosa. Entoávamos, felizes, estreita vereda acima. A avó à frente, eu atrás. E tanta vez me voltava para poder contemplar o ocaso à ilharga da beleza da Fajã da Arruda – não  queria perder o melhor pôr-do-sol do mundo.

Maria Fernandes


Disse o Poeta ao Analista


O meu trabalho são as palavras. Palavras são como rótulos,
Ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso que só as origens das coisas me quebram;
Como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
Despojadas dos  olhos amarelos e das asas secas.
Tenho sempre de me esquecer que palavra é capaz de escolher
Outra, para arranjar outra, até que obtenha
Algo que possa ter dito...
Mas não disse.
O teu trabalho é observar as minhas palavras. Mas eu
Não admito nada. Valho pelo meu melhor, por exemplo,
Quando consigo escrever  o meu louvor a uma máquina de níquel,
Naquela noite no Nevada:  contando como o mágico jackpot
Veio três vezes badalando, pelo écran da sorte fora.
Mas se disseres que isto é algo que o não é,
Enfraqueço, lembrando como senti as mãos estranhas
E ridículas e lotadas com todo
O dinheiro da crença.

Anne Sexton
Tradução: Maria Fernandes

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fantasmas


Alguns fantasmas são mulheres
Abstratas,  pálidas,
De seios flácidos como peixe morto.
Não bruxas, mas fantasmas
Que vêm, movendo os braços inúteis
Como servas desamparadas.

Nem todos os fantasmas são mulheres,
Já vi outros;
Homens gordos, de barrigas alvas,
Meneiam os genitais como trapos velhos.
Não demónios, mas fantasmas.
Este, bate com os pés descalços
Encima da minha cama.

Mas não é tudo.
Alguns fantasmas são crianças.
Não anjos, mas fantasmas;
Ondulando como xícaras de chá rosa
Num qualquer travesseiro, ou esperneando.
Mostrando os sexos inocentes, lamentando
Lúcifer.


Anne Sexton
Tradução: Maria Fernandes

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Birmingham

Aromas há
Que nos levam muito para lá
De qualquer vaga procelosa
Que teime em nos submergir.
Hoje e aqui, cheira a relva acabada de cortar.

Como se a chuva não fosse feroz
Ao ponto de matar o Primordial
Aroma da Imortal Saudade,
- Essa que é só nossa e que a todos queremos dar.

Já não chove.
Mas quedo-me um pouco mais.
E falam comigo. E respondo.
Quebra-se o gelo.
O esquilo passa a  correr.


Ao primeiro corvo que vi, deu-se a estupefacção.
Nova a ideia, nesta cidade.


Maria Fernandes

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Da Imperiosa Urgência de Transbordar

Para todo o lado te levo.
Levo-te para todos os sonos
E para todos os sonhos que não tenho de ti.
- Dançando aos pés
Dos piramidais paralelepípedos
À vista do homem mais esverdeado que o verde.

O que me inspira é a realidade à minha volta.
As coisas que se mexem e não se mexem.
As vivas e as mortas. As que falam
E às que dou eu vida na mente
Insana e doentia, minha.
Aos raios de sol que me banham.
à chuva que me resseca.

À medida que me sinto embutir
Nos marrons tijolos da Bruta cidade a meus pés
À que me sinto subjugar.

Procuro sempre bocados de verde
Onde me possa esconder, como agora,
Entre as árvores.
E finjo sentir a Intemporal Terra, minha
Porque quero sentir as Terras como minhas?
- Se a nenhuma pertenço?
Porquê a elas me quero lançar,
Cultivar uma espécie nova qualquer
Porquê? - Se não sei em que ano paro.
Mas à Terra, essa sei-a bem.
Como ela me soube a Mim.
E assim me fez, como assim te fez, também.
Que também o sentes.
Fizémo-nos assim. E assim nos sabemos.

Maria Fernandes

sábado, 22 de setembro de 2012

Meu Luar

Para ter-te agora 
em meu regaço, 
minha carne, 
aos entremeados 
mundos 
sucumbiria tanto grito....

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

ERÓTICA


O ar e o tempo desaparecem à vista um do outro. Num ápice os poucos metros, os poucos centímetros desaparecem entre os lábios sôfregos. Sustêm-se respirações, só muito depois abrandam os pulsos.
As mãos indecentes e selvagens não se contêm à vista dos corpos, percorrem-no lânguida e longamente - o peito. o pescoço, os seios, o ventre, as nádegas, o sexo quente. O cheiro da sensualidade, intolerável aos sentidos abarca a aura indelével e etérea ao redor dos corpos gritando urgentemente por calor, por posse, por entrega.
A cada peça de roupa atirada ao chão uma emoção desnuda, uma carne descoberta, pronta para ser arrasada no delírio da entrega. Arfam gargantas, arqueiam silhuetas, fundem-se poros. Os dedos procuram urgentes o cerne da essência, clamores ardorosos respondem.
Deixar que a boca velada e húmida lhe percorra a pele amarrotando-a em beijos exigentes e embalar-se na melodia de gemidos e suspiros incontidos.
Ofuscar pelo rasto do brilho da sua saliva nos seios desnudos, abandonando-se ao calor do sexo duro e vero.
O ritmo incompatível e inenarrável é o único sentir da sala, também ela desnuda. Há muito que a fogueira não emite luz, nem calor. Só os corpos se mascaram de real verdade de sentir, abandonados à inverosímel ideia de verdade. Ainda que os sexos se beijem e se fundam, e se amem e se  fundam e morram no renascimento um do outro...  e se fundam. Nunca todo o toque, todo o jeito, todo o olhar será suficiente.
A uma certa altura deixa de haver espaço. Ou som. Ou sequer noção de existência. Ao lado do seu  Eu vê o teu Eu.
Profana reunião de sílabas dissabores, multicolores de sons.
Vero amore.


Maria Fernandes

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Impropérios

Da inexplicável ideia de Imortalidade.
Da inconcebível caducidade de dois.
Do absoluto confronto de epidermes-luz.
Da explicação do inexplicável.
Da guerra entre realidades.
Das vidas iguais e tresmalhadas.
Dos diálogos secretos.
Dos inaudíveis gritos-soneto.
Da verdade que mais parece sonho.
Do sonho que mais parece verdade.

Dizer que te amo é tão violento
Quanto mandar-te ao caralho.
Que se foda!


Maria Fernandes

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Consideração

Extravasar-me e sentar-me à escrita
Não vá o extavasamento abarcar-me a mudez
Dos dias últimos e
No hoje diga o ontem
Faça jorrar o ontem
Sentir de novo o ontem.
Senti-lo na pseudo melodia
Dum sax rosa em Waterloo.
No Sol moribundo em esplendor
No doce ocaso do hoje.
Recolhi as imagens, as cores.
Murmurei as frases que depois esqueço.
Atirei tudo depois - com essa febre
De heroína vencida -
À feroz e lacerante
Penumbra que se insinuou
Entre ramos, ruas, pessoas, olhos rasos.
Varri tudo para o túnel da travessia
Esperei que tudo viesse de volta.
E bebo agora em deleite desse vinho
Que me não embriaga nem me aquece.





Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Contraponto






Nos primórdios era diferente.
Debitava, jorrava emoções com 
Falta de sintaxe, sem metáforas.
Não lembrava alegorias nem epopeias.
Nenhum épico - com excepção de um ou outro -
Parecia reflectir  realidade alguma à
Minha volta nem do que de mim jorrava.
Perdia o juízo, de caneta em  punho.
Ansiosa de jorrar - sem trabalho.
Como se de sede insaciável se tratasse.
E amanhã não houvesse aurora.

Nos dias que correm, de novo no verde
Detenho-me a cada detalhe do movimento
Pé ante pé na relva húmida da
Impiedosa chuva de ontem.
Hoje, tudo brota fluidamente.
Os grandes conceitos ganhos na
Dureza e loucura de muitos dias
Atrás de noites taxidérmicas.
Tudo com a exactidão pronta
Da ciência das palavras
Adornadas de ventosos raciocínios
Explicáveis ou não. Às vezes.

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)
(revisto em 11.01.2014)