Pelos princípios de
Novembro naqueles dias, em que o vento pela ravina da barranca começava já a
correr veloz e cortante fazendo pingar o resfriado nariz ao descanso de mais
uma subida barranca acima e contemplava o verde escuro e ouvia ainda a ribeira,
no fundo. Naqueles dias, eu corria à
beira da cerca grande, socava uma cana e heróicamente vinha varejar a
tal laranjeira, a das laranjas de umbigo. Conseguia descanscá-las em três, às
vezes duas investidas arrancando a casca espessa, meio esponjosa, revelando o
fruto no interior. Eram tão doces e tão rasas de suco que comia três, quatro sem dar por ela. As
últimas bebras tardias, em anos de Verão teimoso, costumava já estarem à mão
numa folha de couve, em cima da pedra grande, ao pé do palheiro. A avó escondia
a chave lá perto num buraco entre as rochas da parede e tapava a abertura com
uma laje que acho que tinha arranjado mesmo para esse fim. Nunca percebi por
que razão a avó nunca levava a chave do palheiro consigo, tipo num chaveiro.
Ela deixava a chave sempre naquele buraco da parede. A avó também nunca trazia
a chave de casa consigo. No terreiro repleto de avencas, orquídeas, antúrios e
sei lá mais o quê, havia sempre um cântaro secreto, que de resto todos sabíamos
qual era, onde ela deixava a minúscula chave de uma das três portas que davam
para o terreiro floral. A avó era assim. Tinha destas coisas.
Era mesmo a última
coisa antes de ir para casa. Isso e ainda passar no corte para apanhar araçás,
daqueles vermelhos pó caminho. Se ainda fosse Verão ia era ao Lombo de Caboz, à
amoreira de João Libano. Ainda bem que nunca nos apanhou senão ia logo chibar à
avó que podia vir de vide, coitada, vencida pelo novo tempo em que os putos não
vergam mas correm e rebelam-se. A minha avó não percebia nada destas coisas mas
ensinou-me o ritual das laranjas de umbigo e dos araçás vermelhos da cerca de
cima. O araçaleiro pendia sobre o palheirinho de cima e podia facilmente trepar
e colher os frutos, tarefa tantas vezes ingrata que eram três para a boca, um
para a sacola. “Tanto tempo, só apanhaste isso?!”, dizia ela depois.
Pelo caminho, eu
cantava com ela cantigas populares que me ia ensinando ao longo do dia e que
disciplinadamente me esforçava por aprender. Às vezes, muitas, eram cânticos
litúrgicos – a avó era católica
fervorosa. Entoávamos, felizes, estreita vereda acima. A avó à frente, eu atrás.
E tanta vez me voltava para poder contemplar o ocaso à ilharga da beleza da
Fajã da Arruda – não queria perder o
melhor pôr-do-sol do mundo.
Maria Fernandes
E era assim, a vida no campo, tão simples e tão bonita.
ResponderEliminarGostei de ler.
Bjs
Uma viagem autêntica à "velha infância", aquela que também foi a minha. Curiosamente, acabou por ser a última verdadeira infância, quando comparada com as vivências das infâncias mais recentes. Gostei de ler e também de recordar o pormenor das laranjas.
ResponderEliminarBjs
A infância no campo, era mesmo assim. A natureza fez parte de nós desde cedo.
ResponderEliminarGostei do texto.
Beijinhos
Chegar á venda do sr Pedro era jà uma conquista do calvário do Lanço. Depois era calcorrear as calçadas para a casa dos tios depois de tirar os sapatos e deixa-los na casa da tia Matilde. Graciosas no olhar de cada um e nos rostos as palavras tinham tanto encanto e acarinhavam a certeza do aprumo e respeito! Desfilam rostos mensagens palavras e as bruxinhas tremeluzentes na noite escura com o côro do rosário no silêncio da noite. Com os primos era Trabalho e pagode E um certo dia não é que se lembraram de dar barrelas e ninguém ficou a salvo. Adorei ler este maravilhoso texto como se mergulhasse no tempo. Era ali O melhor pôr do sol do mundo Beijinho grnd para si M.Fernandes
ResponderEliminarGostei muito do teu texto! Trouxe-me lembranças da minha infância... fruta comida nas árvores, sem vertigens... só a recomendação de não apanhar a fruta melhor, que era pró sacana do tio Padre Alfredo! Mas era a primeira ir!!
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