sábado, 27 de outubro de 2012

Manual para a Lucidez

Desposa-a.
Recebe o ventre que se te dá, semeia-o.
Escreve-lhe em pontos aéreos luminosos
Os pesadelos todos das noites últimas.
- Irá fazê-los mito e aquecer-te-á o cerne.

Bebe-a.
Bebe do rasto das lágrimas que te devota.
Fala-lhe dessa dor dormente que te afaga
À qual esperneias e sacodes em raiva.
- Sopra-la-á em gestos suaves e consolar-te-á.

Rouba-a.
Arranca-a da corda bamba de onde não tomba.
De onde ainda te espera à luz da fé incauta.
Canta-lhe a oração das tuas manhãs de ouro.
- Dela fará mantras no nenúfar do teu lago.

Ama-a.
Sorve-lhe o âmago sedento da pele tua.
Afoga-te no calor dos seios que se lhe ardem ao toque.
Dá-te. Dá-te como se milhões de ti houvesse.
- Milhões dela fará para que jamais só te quedes.



Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2014)








terça-feira, 23 de outubro de 2012

Horas Primeiras

É sempre nas horas primeiras da madrugada
Que recito o teu nome.
Recito-o como se outra poesia não respirasse
Para além do teu eco metafísico
Na tal energia afogo a cor.
Com que me pinto - luz.

Confronto-me, não raras vezes
Com o que de mim poderia haver
Nas horas vagas do meu grito.

Se é verdade que cá do cimo tudo abarco
Verdade também é que lá de baixo
Nada e niguém almeja de mim a visão.



Maria Fernandes

domingo, 14 de outubro de 2012

The Bear

Fica em Stratford Road.
Há um qualquer quê nestes pubs. Gosto de me embutir na mobília velha e ouvir o sotaque dos velhos que vêm beber cidra até já não entender que raio de inglês estarão a falar.
Notam-me logo como desconhecida. Imaginam certamente que notas descritivas ou maléficas estarei a escrever.
Os velhos são músicos. Põem-se a um canto e tocam uma espécie de country ao estilo rockabilly. Ninguém parece ligar-lhes. Os velhos também jogam às cartas. Como sou leiga, não percebo que jogo é. Ah, se ao menos o Jack Daniels que pedi me aquecesse as entranhas podia ser que escrevesse um poema. Um poema sobre os velhos, talvez. Talvez depois o afixasse nas portas do pub. Talvez depois houvesse um velho bêbado que o declamasse.
Os velhos também são mulheres. Encharcam-se de whisky e cola e filas de cidra à pint. De repente, parecem notar os velhos que são músicos e põem-se a menear os corpos velhos nas cadeiras. Patéticos, estes velhos que são mulheres. O século XXI não parece ter chegado aqui. Uma foto neste minuto com uma legenda de 1964 seria perfeitamente plausivel. Uma espécie de regressão. Esta gente diverte-se? Parecem estar todos a representar uma cena de outros tempos. Como se todos se tivessem vestido assim e penteado e  maquilhado assim para estarem aqui hoje e agora. Como se passassem a totais desconhecidos e voltassem às suas vidas reais de velhos na altura em que saem lá para fora.
Não é permitido fumar. Não cheira a whisky e a cigarros. 
Cheira só a whisky.


Maria Fernandes

sábado, 13 de outubro de 2012

From Hell - A Postcard





Bouncing, bouncing...

The further I go, the harder I breathe through those flames..
I have been down for eternities losing my faith
Just bouncing from flame to flame.
Waving goodbye to that muscled man
Climbing up the hill praying sin-words to his huge
And eternal fire rock... he pretends to believe in mercy - but I don´t.

Oh yes, I've seen terrible things while bouncing.
Dogs with several heads and snake tails.
Blind women screaming chants of horror and pain
Through their throats infected with deadly poison.
The eyes jumping from their orbits licking everything around.

When dawns are about to rise and as I struggle
To fly in the land of open perceptions, I can still
Hear that sarcastic laughter of those little devils flying in that flaming red sky.
Some of them like to whisper dirty things in our ears - to burn our senses away
To burn our minds away, to make us wish for more sin as a thirst, as a curse.

Landscapes? Oh, there's a lake of fire I remember now
It burned my tongue when in despair I tried to drink from it's womb.
The rest of my dying speech could be explained by the force
Of my latest screaming thoughts for now I write.
What remained from the tongue... bounces.

After all it could be paradise, then I write in tiredness.
What worths your pain could never end mine, I'll take it as a blessing.
Will drag it out in the desolation land where I gladly
Stab former angel's wings, hoping to fly on them. 
Hoping for they to hold and don´t melt as I finally reach the sun.


Maria Fernandes


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Anna, louca




Anna, louca
Tenho uma faca debaixo do braço.
Quando em bicos de pés debito mensagens.
Serei algum tipo de infecção?
Fiz-te enlouquecer?
Tornei acres os sons?
Disse-te que trepasses à janela?
Perdoa. Perdoa.
Diz que o não fiz.
Diz que não.
Diz.

Reza  Avé-Marias na nossa almofada.
Leva-me o desengonçado dos doze anos
Para o teu colo submerso.
Sussurra-me como a um botão-de-ouro.
Come-me. Come-me como a um pudim-creme.
Toma-me em ti.
Toma-me.
Toma.

Dá-me um relatório sobre a condição da minha alma.
Dá-me um depoimento completo das minhas acções.
Dá-me uma concha de arácea e deixa que a ouça.
Põe-me nos estribos e traz uma excursão.
Enumera meus pecados na lista da mercearia e deixa que os compre.
Ter-te-ei enlouquecido?
Ter-te-ei ligado o auricular e posto uma sirene a tocar?
Terei aberto a porta ao psiquiatra de bigode
Que te arrastou consigo como a uma cesta dourada?
Ter-te-ei enlouquecido?
Desde a sepultura escreve-me, Anna!
Não és mais que cinzas mas ainda assim
Pega na Parker que te dei.
Escreve-me.
Escreve.






Anne Sexton
Tradução: Maria Fernandes

sábado, 6 de outubro de 2012

Idos Dias


                Pelos princípios de Novembro naqueles dias, em que o vento pela ravina da barranca começava já a correr veloz e cortante fazendo pingar o resfriado nariz ao descanso de mais uma subida barranca acima e contemplava o verde escuro e ouvia ainda a ribeira, no fundo. Naqueles dias, eu corria à  beira da cerca grande, socava uma cana e heróicamente vinha varejar a tal laranjeira, a das laranjas de umbigo. Conseguia descanscá-las em três, às vezes duas investidas arrancando a casca espessa, meio esponjosa, revelando o fruto no interior. Eram tão doces e tão rasas de suco  que comia três, quatro sem dar por ela. As últimas bebras tardias, em anos de Verão teimoso, costumava já estarem à mão numa folha de couve, em cima da pedra grande, ao pé do palheiro. A avó escondia a chave lá perto num buraco entre as rochas da parede e tapava a abertura com uma laje que acho que tinha arranjado mesmo para esse fim. Nunca percebi por que razão a avó nunca levava a chave do palheiro consigo, tipo num chaveiro. Ela deixava a chave sempre naquele buraco da parede. A avó também nunca trazia a chave de casa consigo. No terreiro repleto de avencas, orquídeas, antúrios e sei lá mais o quê, havia sempre um cântaro secreto, que de resto todos sabíamos qual era, onde ela deixava a minúscula chave de uma das três portas que davam para o terreiro floral. A avó era assim. Tinha destas coisas.
                Era mesmo a última coisa antes de ir para casa. Isso e ainda passar no corte para apanhar araçás, daqueles vermelhos pó caminho. Se ainda fosse Verão ia era ao Lombo de Caboz, à amoreira de João Libano. Ainda bem que nunca nos apanhou senão ia logo chibar à avó que podia vir de vide, coitada, vencida pelo novo tempo em que os putos não vergam mas correm e rebelam-se. A minha avó não percebia nada destas coisas mas ensinou-me o ritual das laranjas de umbigo e dos araçás vermelhos da cerca de cima. O araçaleiro pendia sobre o palheirinho de cima e podia facilmente trepar e colher os frutos, tarefa tantas vezes ingrata que eram três para a boca, um para a sacola. “Tanto tempo, só apanhaste isso?!”, dizia ela depois.
                Pelo caminho, eu cantava com ela cantigas populares que me ia ensinando ao longo do dia e que disciplinadamente me esforçava por aprender. Às vezes, muitas, eram cânticos litúrgicos – a  avó era católica fervorosa. Entoávamos, felizes, estreita vereda acima. A avó à frente, eu atrás. E tanta vez me voltava para poder contemplar o ocaso à ilharga da beleza da Fajã da Arruda – não  queria perder o melhor pôr-do-sol do mundo.

Maria Fernandes


Disse o Poeta ao Analista


O meu trabalho são as palavras. Palavras são como rótulos,
Ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso que só as origens das coisas me quebram;
Como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
Despojadas dos  olhos amarelos e das asas secas.
Tenho sempre de me esquecer que palavra é capaz de escolher
Outra, para arranjar outra, até que obtenha
Algo que possa ter dito...
Mas não disse.
O teu trabalho é observar as minhas palavras. Mas eu
Não admito nada. Valho pelo meu melhor, por exemplo,
Quando consigo escrever  o meu louvor a uma máquina de níquel,
Naquela noite no Nevada:  contando como o mágico jackpot
Veio três vezes badalando, pelo écran da sorte fora.
Mas se disseres que isto é algo que o não é,
Enfraqueço, lembrando como senti as mãos estranhas
E ridículas e lotadas com todo
O dinheiro da crença.

Anne Sexton
Tradução: Maria Fernandes

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fantasmas


Alguns fantasmas são mulheres
Abstratas,  pálidas,
De seios flácidos como peixe morto.
Não bruxas, mas fantasmas
Que vêm, movendo os braços inúteis
Como servas desamparadas.

Nem todos os fantasmas são mulheres,
Já vi outros;
Homens gordos, de barrigas alvas,
Meneiam os genitais como trapos velhos.
Não demónios, mas fantasmas.
Este, bate com os pés descalços
Encima da minha cama.

Mas não é tudo.
Alguns fantasmas são crianças.
Não anjos, mas fantasmas;
Ondulando como xícaras de chá rosa
Num qualquer travesseiro, ou esperneando.
Mostrando os sexos inocentes, lamentando
Lúcifer.


Anne Sexton
Tradução: Maria Fernandes

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Birmingham

Aromas há
Que nos levam muito para lá
De qualquer vaga procelosa
Que teime em nos submergir.
Hoje e aqui, cheira a relva acabada de cortar.

Como se a chuva não fosse feroz
Ao ponto de matar o Primordial
Aroma da Imortal Saudade,
- Essa que é só nossa e que a todos queremos dar.

Já não chove.
Mas quedo-me um pouco mais.
E falam comigo. E respondo.
Quebra-se o gelo.
O esquilo passa a  correr.


Ao primeiro corvo que vi, deu-se a estupefacção.
Nova a ideia, nesta cidade.


Maria Fernandes