Decide ficar o dia todo a ver tudo e todos mal e então recusa-se a colocar
os olhos. Arrasta a cadeira e a escrevaninha de improviso para perto da janela
do quarto para melhor aproveitar a luz do dia que nunca mais chegava, algum ar fresco pela janela mal
aberta e talvez alguma perspectiva diferente do espaço-tempo à sua volta e
senta-se ao teclado.
É talvez a milésima, centésima, quadragésima oitava vez, e que deve ser a
posição que ocupa na sua lista de pensamentos - julga, que pensa nisto. Já nem
sabe que palavras usar ou tentar qualquer descrição, já que não há descrição
possivel. Na adolescência, amava em dois dias, agora ama em um ano de negação e
rodeio e ansiedade e reclusão e kilómetros e kilómetros... E quando pensou que
ainda assim era melhor que não sentir nada, ri-se dolorosamente por dentro,
rotula a própria mente de insana. E tenta escrever um poema ou dois de palavra
nenhuma se tal fôr possivel, e sente-se escarnecida. Agora, quer despir-se
daquilo. Mas talvez tenha confessado pecados a mais para os deixar, agora,
alheados. Ainda se quer dar mas não percebe em que dimensão ou multiverso tal
se dará ou já se deu. A ideia que num outro Mundo nem se houvessem sequer entrevisto
estas vidas ainda lhe aconchega ao de leve a alma cansada da busca. Deixar ir?
Não deixar ir? Respirar? Não respirar? Ora, quem saberá?! Ainda se entretém a
pensar que tudo está escrito, como se algum pergaminho mágico existisse
realmente com como as vidas todas em todos os mundos iriam ser, e parecer e morrer
e perecer, e então ainda se consola na inválida ideia de que talvez, e só
talvez, desta vez não caiam as paredes de saudade que vai trepando dia e noite
e alvorada e ocaso...
Nunca sabe como começar, às vezes tem uma frase que imaginou em qualquer
devaneio mental e que depois estica até dar um texto ou coisa que valha, mas
nunca se sabe. Montes de frases atiradas ao vento, ao ar, ao que for. Hoje
cansa-se, como de resto se vem cansando. Escreveu então sobre a vontade do não
sentir, do não querer, do não desejo. Coisas há, que de modo a serem
preservadas, nunca se as pode nomear, nem escrever, nem muito menos sequer pensar, seria pecado altamente capital com
direito a navegação directa ao Hades. Espera, ainda, acordar na gélida
madrugada e não sentir o ímpeto de fuga guerreira e não ter de contá-lo, depois
ao papel, nem sedimentar tal sentir em verbos, nem mastigar descrições, nem
procurar sinónimos em ventos ou cristais de geada.
Uma vez mais, e deseja-a definitiva, decide deixar ir. Que não é nem nunca
foi suposto. Que foi engano. Que o maldito pergaminho não existe. Que tem andado este tempo enganada por si
mesma e por tudo e por todos. Uma vez mais, e deseja-a a última, quer atirar-se
no vazio ainda que nada se esfume, ainda que tudo lhe espere à tona e na volta
da infindável aterragem já sabida desde o início do conto do etéreamente impossivel.
Pela última vez, ela assim quer desesperadamente, irá desnudar-se do calor no
peito, da dor do abraço que não vem, da palavra que não surge em resposta, do
silêncio gritante socando ecos. Da indiferença, do encolher de ombros, do
carregar de sobrolho, do trejeito com a boca e as covinhas que surgem. Do
perfeito puzzle dos corpos e dos lábios, dos olhos que falam e que ouvem e declamam
poesias-verdade-nua, das mãos que conhecem todos os caminhos da pele... não
quer, não quer, não quer.
Maria Fernandes
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