domingo, 30 de dezembro de 2012


É no cansaço reclinado de uma noite como esta
Que se acendem estados de ser, de respirar,
Do sentir, da saudade e do que se sonha.
Sempre do que se sonha. Sempre do que se deseja.
Como se não fosse pecado.
Como se infames não fossem as palavras mudas que ouso sibilar
No regaço do teu corpo ausente, aniquilado, ébrio de mim.
Ainda que de castas se pintem. Ainda que em lilazes me acariciem a fronte,
Sei o acre do beijo envenenado que em ânsias me depositam.
Adornam-me o pensamento com ciosas ideias baloiçantes.
Incendeiam-me os olhos gastos do contemplar de eternidades.

Choro tanto que é comum convencer-me que de lágrimas me faço.
De mim tanto irrompe em catadupa que temo pela essência do Cerne.
É pertinente considerar que os homens são de prantos recheados.
Se assim o não é, onde se afogam os cantos de cada madrugada?
Vagueiam ainda perdidos na sombra decadente dos âgulos esguios?
Pairam dias sem fim aguardando pelo mar da torrente nocturna?
Capturam poros imaginários inócuos, sonham sonetos antigos
Sentidos há muitos, muitos anos, antes das formas se saberem formas?
Lambem de ímpeto as suspensas cobranças da loucura perene, prenhe
De cadências derramadas em cálices de sangues sagrados, chagas infinitas,
Negras e prateadas do luar desta noite reclinada na amplitude
Do descomunal esforço de te não pensar.

E desperta-se para a ignóbil e férrea fé da espectação em sombras siamesas das sombras nossas.

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Do não querer


Decide ficar o dia todo a ver tudo e todos mal e então recusa-se a colocar os olhos. Arrasta a cadeira e a escrevaninha de improviso para perto da janela do quarto para melhor aproveitar a luz do dia que nunca  mais chegava, algum ar fresco pela janela mal aberta e talvez alguma perspectiva diferente do espaço-tempo à sua volta e senta-se ao teclado.
É talvez a milésima, centésima, quadragésima oitava vez, e que deve ser a posição que ocupa na sua lista de pensamentos - julga, que pensa nisto. Já nem sabe que palavras usar ou tentar qualquer descrição, já que não há descrição possivel. Na adolescência, amava em dois dias, agora ama em um ano de negação e rodeio e ansiedade e reclusão e kilómetros e kilómetros... E quando pensou que ainda assim era melhor que não sentir nada, ri-se dolorosamente por dentro, rotula a própria mente de insana. E tenta escrever um poema ou dois de palavra nenhuma se tal fôr possivel, e sente-se escarnecida. Agora, quer despir-se daquilo. Mas talvez tenha confessado pecados a mais para os deixar, agora, alheados. Ainda se quer dar mas não percebe em que dimensão ou multiverso tal se dará ou já se deu. A ideia que num outro Mundo  nem se houvessem sequer entrevisto estas vidas ainda lhe aconchega ao de leve a alma cansada da busca. Deixar ir? Não deixar ir? Respirar? Não respirar? Ora, quem saberá?! Ainda se entretém a pensar que tudo está escrito, como se algum pergaminho mágico existisse realmente com como as vidas todas em todos os mundos iriam ser, e parecer e morrer e perecer, e então ainda se consola na inválida ideia de que talvez, e só talvez, desta vez não caiam as paredes de saudade que vai trepando dia e noite e alvorada e ocaso...
Nunca sabe como começar, às vezes tem uma frase que imaginou em qualquer devaneio mental e que depois estica até dar um texto ou coisa que valha, mas nunca se sabe. Montes de frases atiradas ao vento, ao ar, ao que for. Hoje cansa-se, como de resto se vem cansando. Escreveu então sobre a vontade do não sentir, do não querer, do não desejo. Coisas há, que de modo a serem preservadas, nunca se as pode nomear, nem escrever, nem muito menos sequer  pensar, seria pecado altamente capital com direito a navegação directa ao Hades. Espera, ainda, acordar na gélida madrugada e não sentir o ímpeto de fuga guerreira e não ter de contá-lo, depois ao papel, nem sedimentar tal sentir em verbos, nem mastigar descrições, nem procurar sinónimos em ventos ou cristais de geada.
Uma vez mais, e deseja-a definitiva, decide deixar ir. Que não é nem nunca foi suposto. Que foi engano. Que o maldito pergaminho não existe.  Que tem andado este tempo enganada por si mesma e por tudo e por todos. Uma vez mais, e deseja-a a última, quer atirar-se no vazio ainda que nada se esfume, ainda que tudo lhe espere à tona e na volta da infindável aterragem já sabida desde o início do conto do etéreamente impossivel. Pela última vez, ela assim quer desesperadamente, irá desnudar-se do calor no peito, da dor do abraço que não vem, da palavra que não surge em resposta, do silêncio gritante socando ecos. Da indiferença, do encolher de ombros, do carregar de sobrolho, do trejeito com a boca e as covinhas que surgem. Do perfeito puzzle dos corpos e dos lábios, dos olhos que falam e que ouvem e declamam poesias-verdade-nua, das mãos que conhecem todos os caminhos da pele... não quer, não quer, não quer.

Maria Fernandes

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Bicudismo do Futuro (aqui de onde não deveria ter saído)


“O Futuro é uma criatura bicuda que se estende e espreguiça nas incontáveis e absortas cordas dos universos todos. Mascara-se da côr garrida do capricho do momento e devaneia pairando em despojos de vidas-memórias. Atrás de si, vai largando o lastro que em alguma era lhe foi permitido. Depois fita-nos, em espanto e corta-nos a garganta. E deixa-nos em júbilo” –  assim rezava o sonho da infância do não ser. Dentro dos universos, sonhamos uma espécie de pseudo-realidade que nos parece nossa, apoderamo-nos das falácias que se nos dá, quando  em verdade, a mais não nos é permitido aspirar que à condição de marionetas iludidos de livre arbítrio. Ter o espaço, o tempo como nossos, não saber onde desenhar as formas oblíquas das cordas onde nos suspendemos, confiando que se suspende o tempo, quando este nos mascara e nos zomba a cada segundo que- loucos! – chamamos nosso.
Em bicudismos do espaço-tempo e por todas as eras e universos se espraiam passado, presente e futuro. E continuamos – em júbilo.

Maria Fernandes

domingo, 9 de dezembro de 2012

Uma Exortação



Camaleões alimentam-se de luz e de ar:
O alimento dos poetas é o amor e a honra:
Se neste vasto mundo de esmero
Os poetas pudessem o mesmo fazer
Com a sua pequena labuta,
Mudariam alguma vez o seu tom
Como aos camaleões a luz faz,
Ajustando-os a cada raio
Vinte vezes por dia?

Os poetas estão nesta fria terra
Como os camaleões devem estar,
Escondidos do seu nascimento prematuro
Numa gruta sob o mar;
Onde há luz, mudam os camaleões:
Onde não há amor, fazem-no os poetas:
Honra é amor mascarado: se poucos
Encontram um ou outro, nunca estranham
Dos mesmos esse alcance.

Ainda assim, não ousem manchar com riquezas ou poder
A mente livre e divina de um poeta:
Se os luminosos camaleões pudessem devorar
Mais que feixes e vento,
Cresceriam tão terrenos e breves
Como os seus irmãos lagartos.
Filhos de uma soalheira estrela,
Espíritos para além da lua,
Oh, recusem o dom!

Percy Bysshe Shelley

Tradução - Maria Fernandes 

A Flor que Hoje Sorri


A flor que hoje sorri
Amanhã morre;
E tudo o que desejamos que fique
Nos seduz e depois parte .
Qual o prazer do mundo?
Luz que zomba da noite,
Tão breve quanto flamejante.

Virtude, como é efémera!
Amizade, quão rara!
Amor, como vende pobres êxtases
Por orgulhos em desepero!
Mas nós, e mesmo que em breve caiam,
Resistimos à sua alegria, e a tudo
A que nosso chamamos.

Enquanto os céus são azuis e ígneos,
Enquanto as flores são garridas,
Enquanto olhos que mudam antes da noite
Alegram o dia
Enquanto as horas calmas arrepiam,
Sonhai, pois – e do seu sono
Acordai depois para o lamento.


Percy Bysshe Shelley

Tradução - Maria Fernandes

sábado, 8 de dezembro de 2012

Some Faith

É uma vontade de sumir-se pelo chão dentro, esquecer-se.
Ser um novo a cada segundo. Mesclar-se no metafísico, saber nada.
Saber tudo, sentir tudo - ver nada, amar nada, odiar ecos.

É um ter-se de pé desmaiando a cada inspira-expira.
E lembra da dolorosa experiência do existir a insistir.
Não se sabe onde se insiste, não se sabe que se existe.

É o tudo dar e nada reter. É o despojar-se do pudor
Dos castos anos em que se não sonha a clarividência.
Saber-se desnudo, banido de si mesmo, escorraçado de si mesmo.

É de uma náusea velha e gasta de quem sabia já que o tudo
Mais não é que nada na curva apertada das vidas balbuciantes.
As vidas não são mais que dejectos de memórias.

É um sol que não derruba Ícaro. Um vinho que não embebeda Baco.
E ainda, embriagados de sobriedade, bradamos aos infernos
Um pouco de fé, só um pouco de fé cáustica, cálida. Um pouco.



Maria Fernandes