sábado, 6 de outubro de 2012

Idos Dias


                Pelos princípios de Novembro naqueles dias, em que o vento pela ravina da barranca começava já a correr veloz e cortante fazendo pingar o resfriado nariz ao descanso de mais uma subida barranca acima e contemplava o verde escuro e ouvia ainda a ribeira, no fundo. Naqueles dias, eu corria à  beira da cerca grande, socava uma cana e heróicamente vinha varejar a tal laranjeira, a das laranjas de umbigo. Conseguia descanscá-las em três, às vezes duas investidas arrancando a casca espessa, meio esponjosa, revelando o fruto no interior. Eram tão doces e tão rasas de suco  que comia três, quatro sem dar por ela. As últimas bebras tardias, em anos de Verão teimoso, costumava já estarem à mão numa folha de couve, em cima da pedra grande, ao pé do palheiro. A avó escondia a chave lá perto num buraco entre as rochas da parede e tapava a abertura com uma laje que acho que tinha arranjado mesmo para esse fim. Nunca percebi por que razão a avó nunca levava a chave do palheiro consigo, tipo num chaveiro. Ela deixava a chave sempre naquele buraco da parede. A avó também nunca trazia a chave de casa consigo. No terreiro repleto de avencas, orquídeas, antúrios e sei lá mais o quê, havia sempre um cântaro secreto, que de resto todos sabíamos qual era, onde ela deixava a minúscula chave de uma das três portas que davam para o terreiro floral. A avó era assim. Tinha destas coisas.
                Era mesmo a última coisa antes de ir para casa. Isso e ainda passar no corte para apanhar araçás, daqueles vermelhos pó caminho. Se ainda fosse Verão ia era ao Lombo de Caboz, à amoreira de João Libano. Ainda bem que nunca nos apanhou senão ia logo chibar à avó que podia vir de vide, coitada, vencida pelo novo tempo em que os putos não vergam mas correm e rebelam-se. A minha avó não percebia nada destas coisas mas ensinou-me o ritual das laranjas de umbigo e dos araçás vermelhos da cerca de cima. O araçaleiro pendia sobre o palheirinho de cima e podia facilmente trepar e colher os frutos, tarefa tantas vezes ingrata que eram três para a boca, um para a sacola. “Tanto tempo, só apanhaste isso?!”, dizia ela depois.
                Pelo caminho, eu cantava com ela cantigas populares que me ia ensinando ao longo do dia e que disciplinadamente me esforçava por aprender. Às vezes, muitas, eram cânticos litúrgicos – a  avó era católica fervorosa. Entoávamos, felizes, estreita vereda acima. A avó à frente, eu atrás. E tanta vez me voltava para poder contemplar o ocaso à ilharga da beleza da Fajã da Arruda – não  queria perder o melhor pôr-do-sol do mundo.

Maria Fernandes


5 comentários:

  1. E era assim, a vida no campo, tão simples e tão bonita.
    Gostei de ler.

    Bjs

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  2. Uma viagem autêntica à "velha infância", aquela que também foi a minha. Curiosamente, acabou por ser a última verdadeira infância, quando comparada com as vivências das infâncias mais recentes. Gostei de ler e também de recordar o pormenor das laranjas.

    Bjs

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  3. A infância no campo, era mesmo assim. A natureza fez parte de nós desde cedo.
    Gostei do texto.
    Beijinhos

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  4. Chegar á venda do sr Pedro era jà uma conquista do calvário do Lanço. Depois era calcorrear as calçadas para a casa dos tios depois de tirar os sapatos e deixa-los na casa da tia Matilde. Graciosas no olhar de cada um e nos rostos as palavras tinham tanto encanto e acarinhavam a certeza do aprumo e respeito! Desfilam rostos mensagens palavras e as bruxinhas tremeluzentes na noite escura com o côro do rosário no silêncio da noite. Com os primos era Trabalho e pagode E um certo dia não é que se lembraram de dar barrelas e ninguém ficou a salvo. Adorei ler este maravilhoso texto como se mergulhasse no tempo. Era ali O melhor pôr do sol do mundo Beijinho grnd para si M.Fernandes

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  5. Gostei muito do teu texto! Trouxe-me lembranças da minha infância... fruta comida nas árvores, sem vertigens... só a recomendação de não apanhar a fruta melhor, que era pró sacana do tio Padre Alfredo! Mas era a primeira ir!!

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