quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock - T.S. Eliot



 
Vamos lá então, tu e eu,
Quando a noite se espalha pelo céu
Como um paciente eterizado sobre uma mesa;
Vamos lá, por certas ruas meio desertas,
Por refúgios murmurados
De incansáveis noites em hotéis baratos
E restaurantes de serradura com ostras:
Ruas que seguem como um argumento de tédio
De intenção insidiosa
Para te levar a uma arrasadora questão...
Oh, não perguntes, “O que foi?”
Vamos lá, à nossa visita.

Na sala as mulheres vão e vêm
Falando de Michaelangelo.

O nevoeiro amarelo que esfrega as costas contra o vidro das janelas
O fumo amarelo que esfrega o focinho nos vidros das janelas
Lambeu a língua nas esquinas da noite
Hesitou perante poças de esgoto,
Deixou cair no dorso a fuligem das chaminés,
Escorregou pelo terraço, deu um salto repentino,
E vendo que era uma noite suave de Outubro
Enrolou-se à volta da casa, e adormeceu.

E haverá, de facto, tempo
Para o fumo amarelo que escorrega pela rua,
Esfregando as costas contra o vidro das janelas;
Haverá tempo, haverá tempo
Para preparar o rosto para encontrar os rostos que encontramos;
Haverá tempo para assassinar e para criar,
E tempo para todos os trabalhos e dias de mãos
Que te elevam e te despejam uma pergunta no prato;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para cem indecisões
E para cem visões e revisões
Antes de tomarmos chá com tostas.

Na sala, as mulheres vão e vêm
Falando de Michaelangelo.

E haverá mesmo tempo
Para se questionar, “Atrevo-me?” e, “Atrevo-me?”
Tempo para voltar atrás e descer a escada,
Com uma careca no meio do meu cabelo –
[dirão: “Como lhe cresce ralo o cabelo!”]
O meu casaco de gala, o meu colarinho firmemente apontado ao queixo,
A minha gravata rica e modesta, mas ajeitada por um simples alfinete –
[Dirão: “Mas como lhe estão magras as pernas e os braços!”]
Atrevo-me
A incomodar o universo?
Num minuto há tempo
Para decisões e revisões que um minuto reverterá.

Pois os conheci a todos, já, conheci-os a todos
Conheci as noites, manhãs, tardes,
Medi a minha vida em colheres de café;
Conheço as vozes morrendo da queda fatal
Através da música de um quarto distante.
Então, como presumir?

E conheci os olhos, já, conheci-os a todos –
Os olhos que te fixam numa frase formulada,
E quando me formulo, alastrando-me na vertical,
Quando faço o pino e me contorço na parede,
Então como deverei começar
A cuspir todos os caroços dos meus dias e vias?
E como presumir?

E conheci os braços, já, conheci-os a todos –
Braços apulseirados e brancos e nús
[Mas à luz do candeeiro, imbuídos em cabelo castanho claro!]
Será o perfume de um vestido
Que me faz assim divagar?
Braços pousados numa mesa, ou que enrolam à volta um xaile
E devo então presumir?
E como começar?

Deverei dizer que percorri ruas estreitas no crepúsculo
E vi o fumo que saindo dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa debruçados em janelas?

Eu devia ter sido um par de garras ásperas
Cirandando pelo chão de mares silenciosos.

E a tarde, a noite dorme tão pacífica!
Suavizada por dedos longos,
Adormecida... Cansada... ou nos engana,
Estendida no chão, aqui ao nosso lado.
Deverei, depois do chá com bolos e creme,
Ter a força de forçar o momento à sua crise?
Ainda que tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Ainda que tenha visto a minha cabeça (ficando já careca) ser posta numa travessa.
Não sou nenhum profeta – e não há aqui nenhuma grande questão;
Vi o momento em que estremeceu a minha grandeza.
E vi o eterno Servo segurar-me no casaco, e esgueirar-se,
E em suma, tive medo.

E teria valido a pena, afinal,
Depois das xícaras, da marmelada, do chá,
Entre a porcelana, entre alguma conversa de tu e eu,
Teria valido a pena,
Ter mordido a matéria com um sorriso,
Ter espremido o universo numa bola
Enrolá-lo em alguma arrasadora questão,
Ter dito: “Eu sou Lázaro, venho dos mortos,
Volto para dizê-lo a todos, irei dizê-lo a todos”-
Se um de nós, ajeitando uma almofada na cabeça,
Dissesse: “Não é nada disso que quis dizer.
Não é mesmo nada disso.”

E teria valido a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Depois dos pôres-do-sol e dos pátios e das ruas polvilhadas,
Depois das novelas, depois das chávenas de chá, depois das saias que se arrastam pelo chão –
E isto, e tanto mais? –
É impossível dizer o que quero mesmo dizer!
Mas como se uma lâmpada mágica atirasse os nervos à vez contra uma tela:
Teria valido a pena
Se um de nós, ajeitando uma almofada ou atirando um xaile,
E virando-se para a janela, dissesse:
“Não é isso,
Não é nada disso que quis dizer.”

Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem é suposto que o fosse;
Sou um homem servo, um que fará
Por surgir algum progresso, começar uma cena ou duas,
Aconselhar o príncipe; sem dúvida, boa ferramenta,
Diferencial, feliz por ser útil,
Político, cauteloso, e meticuloso;
Cheio de grandeza moral, mas um pouco obtuso;
Às vezes até, um pouco ridículo –
Quase, às vezes, o Louco.

Envelheço... Envelheço...
Usarei as beiras das calças enroladas.

Deverei dividir o cabelo atrás? Atrevo-me a comer um pêssego?
Usarei calças brancas de flanela e passearei pela praia.
Ouvi as sereias cantar, uma a uma.

Não me parece que vão cantar para mim.

Vi-as cavalgar em ondas de volta ao mar
Penteando o cabelo branco das ondas encrespadas
Quando o vento sopra a água preta e branca.

Hesitámos nas cavidades do mar
Por mulheres-mar cobertas de algas vermelhas e castanhas
Até que vozes humanas nos acordam, e nos afogamos.

Tradução: Maria Fernandes



quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Isto não é para Velhos



 
Cheguei e escrevi de assentada
Todas as linhas vazias que abaixo lês,
- cortam-se os cabos um a um devagarinho
E havendo tudo a dizer - não se diz nada.
Gasto, usado, velho é já tudo.
Ao menos o silêncio é novo,
Não como nós, que nunca fomos nós e
Somos tão velhos, amor, tão velhos.
Vamos morrer de velhos,
Vamos morrer de velhos como os velhos que nunca fomos ou
até mesmo como os que o foram e depois morreram
- de velhos.
E quereremos sempre mais um dia
(não há dias a mais na tentativa de provar a nossa Impossibilidade)

Olha, amor – repara nas nossas mãos envelhecidas
Vê como ganham manchas da falta de nos tocarmos.
Vê como estão gastas de nos percorrermos.
Vê, amor, como rareiam nossos cabelos,
Como nos cobrem cãs sem piedade,
Como nos cansamos e como estão gastas, velhas e gastas
- as palavras.
(não há palavras por demais velhas que não sirvam para limpar pó)

Ah, se não fôssemos velhos e gastos!
Se as palavras se não houvessem suicidado, maltrapilhas,
Em precipícios de nós, que nunca fomos nós, e se as tivéssemos poupado.
Se um suspiro só sobrásse, se houvesse um só gesto, um só.
(e se tudo isto fosse, de novo se prova a inutilidade das palavras)
- todos os trilhos terra-escarpa-mãe poderíamos ainda fazer render
Sob os pés de nós, que nunca fomos nós, nem nada parecido
Nem estes, nem aqueles, nem por mais que quiséssemos,
(teremos querido?)
Mas não, somos velhos – velhos sem tino.

Vês, amor, como nos falha a memória.
Falha-se-nos como falha aos velhos. Esquecemo-nos que filmes vimos.
Esquecemos canções, palavras, sempre as palavras, essas bestas.
Esquecemos lábios e peitos em praias. Corpos e ritmos. Cores.
Somos já só a ideia do que já não se tem tempo de ser.
Tudo porque estamos velhos. Falha-nos a memória.
(e todas as cenas e verdades-grito silenciosas aprisionadas no limbo-eu)

O silêncio, ao menos, é novo – purgante.
Já que, tão velhos e reumáticos hoje, já nem suspirar ousamos.
(e a longamente ansiada velhice, trocista)

Há acontecimentos terríveis que nos salvam, amor.
É por isso que estamos velhos.
Velhos e idos. – Agora, vai.

(vai?)


(estavas aí?)



Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2014)