domingo, 24 de junho de 2012

A Espera


Até nas imensuráveis milhas te espero.
Na chuva que vejo cair,
Vejo cair o teu olhar em meu corpo desnudo.
Na junção musical da chuva com um Nocturne.. te espero também.
Na beleza que descubro nas melodias
Entrecortadas por raios decibéis,
Na rajada mais forte deste vento,
Numa ou noutra nuvem mais negra,
Em cada negro café e pensamento te espero. Mas tu não vens...

Espero-te mesmo no café da esquina,
Onde nunca irás entrar para uma bica.
Espero-te na estação de comboio
Onde não acorreste para me impedir de partir
Nem de ti e de mim apartar abomináveis verdades..
-Trouxe-as na mala, assombram todos os meus dias e noites..
Até em todas as cãs dos desconhecidos te espero.
Nos seus olhares indiferentes em boa verdade te aguardo.
No marulhar desse oceano silencioso naquela noite,
No sítio onde se escondem todas as estrelas
Deslumbrada, aturdida, escravizada te espero. Mas tu não vens.

Maria Fernandes

sábado, 23 de junho de 2012

Contemplação VIII


Sempre que o silêncio me abarca mergulho neste estado contemplativo. Posso ficar assim durante horas. Às vezes dou por mim, já vai a noite a cair. Quando desperto não recordo sobre que pensamentos, ideias, emoções terei deliberado silenciosamente em minha mente. Preocupo-me muitas vezes com a minha sanidade mental, não confio muito nela. Tento acalmar-me com o facto de não haver historial de loucura na família, embora esta possa não ser uma questão genética mas comportamental e resultado do meio envolvente, realidade visceral.
Diante do meu olhar perdido, há mil e uma visões, trezentos e cinquenta mil diálogos imaginários, oitocentos e trinta e sete milhões de supostas situações, histórias de nada, de uma dimensão a que ainda nem cheguei. Depois de acordar disto, tento lembrar o que em minha ideia ia e de novo me vejo embarcar em novas ideias sobre a ideia que vinha tendo e da qual não me consigo lembrar. E de sonho em sonho sobre ideias e pensamentos em frente à minha janela me deixo embalar ao som do vento nas árvores - o seu movimento faz-me ter a certeza de que afinal acordei algures na minha manhã e desci ao 1º andar onde à secretária, diante da grande janela em divagações me perco.
A poesia é tentativa normalmente falhada de auto-explicação, explanação de mim mesma. Ora me suplanta, ora me deixa em ânsia e desejo. Ora me preenche, ora me vaza. Coexistência raramente pacífica que tanta vez me deixa em franja o que, diga-se de passagem, não é difícil. E admiro-me que tanta gente goste, onde andei eu? Bem, na verdade não acho que seja assim tão bom. Sou péssima a não ser Eu e raro do que crio  não fica a metade.

Poucas vezes escrevi de forma tão clara. Aqui e em qualquer lado, sabendo que alguém lerá, a tentativa de mascarar o que sinto, o que penso, o que imagino com melodias, cores, sintaxes e vírgulas distintas como que para engodo. Gosto de "labirintear" o discernimento de quem lê, se ler e de "inventar" palavras como "labirintear" a meio de um qualquer texto. Gosto que seja preciso ler duas ou três vezes para começar a perceber, tal é a intrincada trama que lhe adoro fazer inerente. Contudo, garanto que poucas vezes escrevi tão claramente - dizendo realmente o que escrevo, com vontade e sem vontade de que me perguntem nada. Já pensei  e escrevi sobre essa parte, não estarei a repetir-me. Ide à Contemplação V que tenho mais que faça.
Não, não saiu poesia na oitava parte da indefinida Contemplação em que tenho colocado meus despojos mentais - às vezes saem bem adornados -, mas um não-sei-quê espécie de retrato actual da minha visão e da certeza quanto ao ser real que me dão as árvores dançantes. E saiu bem claro, de uma clareza ofuscante que nem eu percebo. Mas no texto me fui e... eis-me chegada. Vencida pela insignificância do eco. Questionando ainda se é Real ou Já Visto.

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A Hora Da Mentira

Desfazer-me  de tudo, até da Identidade!
Despir-me de Ideias, pensamentos e ilacções.
Não opinar, não saber, não se revoltar!
Desfazer-me do meio metro à minha volta,
Vazar-me de Aura - não mais ser Eu.
Renunciar a todo e qualquer sentir
Apedrejar, pedra tornando-me à mais
Pálida sombra de emoção, - que se vá.


Que nada possuo, nem me possuo nem
Permito à alma que sonhe em te possuir.
Talvez, de novo, numa outra Terra, com um
Outro tempo e outro Sal, talvez então..
Não importe o papel que se tenha -
Apenas que se tenha um. Um dos Eternos, já agora, sff.
Que não tenha prazo de validade, que jamais expire irremediavelmente.
Que me escreva de Eros e me acaricie sem tocar.
Que me sussurre na noite ao cair e embalar.

Do penhasco atirar a Voz que em socalcos
Me amedrontava e retraía.
No final, nada mais lembra que a Hora da Mentira.


Maria Fernandes

Dissertação Mental


Não dizer nada. Não ter nada a declarar.
Furtivamente atirar-me à mercê das palavras,
desfiar o novelo em que se instalou a minha mente.
Espraiar monólogos imaginários, encenar reacções.
Descrever, reescrever escrevendo todas as sílabas
De que me lembre de existirem. Talvez invente
Uma ou outra.. ou uma palavra ou outra...

Mas sem dizer nada, nada de nada.
Armar redoma em mim mesma, não me sentir
A mim mesma. Sentir-me do exterior de mim mesma.
Como se houvesse uma nova versão de mim
A cada eternidade e todas acontecessem ao mesmo tempo.
Ainda assim, nada teria a dizer. Nada iria querer dizer.
Preferiria esvoaçar a mente silenciosa ao ritmo das teclas a que hoje me rendo.
Na tecitura caracterizada estendo as vestes da insanidade
Coloco à vista impropérios indizíveis, perceptíveis a meia-dúzia.
Que se lixe, respiro amanhã.

Maria Fernandes, in Contemplações, Constatações e 30 Ventos (2015)


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Auto-Atestado de Insanidade



1.
Pergunto-me a cada instante
Como é possível que sinta ISTO.
Se ISTO nem palpável é. Não tem cor.
Nem textura. É invisível. Não é calor
O que deixa na pele, é outra coisa.
Essa coisa é que ISSO deve ser.
Embora nem nome lhe dê.-
- Por inominável ser.
- Por impronunciável ser.
Mas se ISTO não é este nem
Aquele outro, que será, então?
Macabra, medonha e sinuosa
Forma, a que torna por entre
Meus pianos dedos,
Sulcados e atropelados dedos.

Que se ISTO nada é como o
Sinto como tudo, como todo?

2.
É absurdo, mas imagino-te
Deambulando por esta casa.
Vejo-te realmente deitado
de bruços na minha cama,
sentado à minha secretária.
Conversamos com os olhos,
Lemos poesia.
Nas manhãs preparas-me
A dose dupla de café
E o chá,  à noite. Tudo com ISSO.










3.
Não posso estar bem.
Fito por longas horas o
Infinito à minha frente e
Percebo que nada estava a ver,
- Sonhava de olhos abertos.
E vens tu, descendo a escadaria
“heyyy..” – e logo ISTO,
Que me abraça e repele
E me deixa sem respirar.
Ver-te é um
Mojito em Agosto, 
Um absinto em Janeiro..

4.
Nas anímicas Protuberâncias
 do desalmado estado em que
 nos fundimos, esvaimos e calmamente
voltamos ao mundo do oxigénio,
demos de caras com a evidência de nossas Inerências...
Tu voltaste ao mundo dos vivos
Eu deixei-me ficar no multiverso das sombras
Do meu desejo excomungado..


Maria Fernandes